quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Leituras diagonais


Aqui segue, então, o meu mea culpa: sim,  é verdade, já aqui abordei muitos autores e ensaios sem jamais os ter lido; tendo-me apenas ficado por consultas online. Destacaria o Robert Misrahi e o seu Tratado da Felicidade; o Gender Trouble da Judith Butler ou o Why Love Hurts da Eva Ellouz.

E obrigo-me aqui a esta confissão por ter, ainda há dois posts atrás, feito o elogio duma cultura vertical onde a referência ao autor e à obra contrasta com um modelo horizontal de cultura em que, em modos de consumidor, usamos ideias e melodias sem em momento algum reverenciar ou remunerar o seu criador.

Reconheço a total injustiça e até imoralidade deste modelo, mas não posso negar que faço também eu parte desta cultura karaoke. E como dito no post anterior, ando a ler o  “Como falar dos livros que nunca lemos”, do Pierre Bayard onde se dessacraliza com bastante humor a relação ao livro; ao ponto de nalguns casos se recomendar a não leitura como forma ideal de manter uma visão de conjunto propicia a opiniões convincentes.

Mas sem chegar a este extremo, são ainda citados exemplos como o de Montaigne, que padece de uma memória tão aérea que acaba por não se lembrar se leu ou não leu um determinado livro; isso, porque “o que me fica é coisa que não reconheço ser do outro (...) o autor, o lugar, as palavras e outras circunstâncias, esqueço-as, incontinente”

Outros exemplos há em que sucede todo o contrário: é o caso do bibliotecário do “homem sem qualidades” que nunca leu nenhum dos livros da sua biblioteca mas que pode falar e referenciar cada um deles, depois de lhes ter lido o índice.

Portanto, ao termo do ensaio, fica a questão de saber o que é que se entende por ler um livro: a título de resposta, Bayard brinda-nos com a sua teoria da dupla orientação que consiste em sabermos situar uma obra num determinado contexto histórico e de nos sabermos, em última análise, situarmos a nós próprios dentro dela.

Toda esta teoria, reconduz-me para a lógica de um dos prémios literários mais originais de que já ouvi falar: le Prix de la page 112. Como o nome indica, trata-se dum prémio cujas obras selecionadas são apenas avaliadas pelo conteúdo da página 112; e isso, com tudo o que implique livros com página 112 em branco ou com menos de 112 páginas.

Há algo de absurdo dentro de tudo isto, mas se formos a ver a forma como se processam as pré-seleções de livros noutros grandes prémios, em que se reduzem milhares de exemplares a duas dezenas, não se duvide de que este procedimento da página 112 não fugirá muito ao utilizado pela maioria dos leitores profissionais.

O bom deste ensaio escrito por uma personalidade reconhecida no meio literário, e que faz ao longo deste livro a apelo a muitas sumidades intelectuais que também partilharam do principio da leitura diagonal, é que tem o mérito de falar verdade. 

Bem ou mal, parece-me saudável sermos capazes de deixar de papaguear uma cultura do politicamente correcto, dissimulando verdades. Advogo aqui o direito de se poder opinar sobre uma obra folheada; libertemo-nos deste principio de cultura vertical que inibe a palavra.

Há que admiti-lo, não é para todos ler os dois volumes do Don Quixote; os oito da obra do Proust. É natural que sejamos selectivos. Contudo, não vejo por que razão deixaríamos de poder questionar ou até discursar sobre essas obras por não as termos lido, por completo.

Mais do que ler ou não ler, acho que importa aqui premiar um principio de honestidade face à fonte.  Numa altura em que há tanta adaptação cinematográfica de livros, que os alunos só se baseiam na wikipédia, parece-me por demais hipócrita e vão, mantermos um discurso que exclua toda a pluralidade das fontes que em muito contribuem para a vitalidade da obra. 

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