segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Os montinhos da culpa


Desde sempre que sou assim: quando era miúdo, quem se atrevesse a enfiar a mão dentro da minha sacola, no meio das canetas de feltro sem tampa, de testes e rascunhos amarrotados e meio embebidos de tinta permanente lá ia encontrar os meus cadernos. 

As primeiras páginas eram sempre irrepreensíveis: a data sublinhada a régua, de encarnado; caligrafia cuidada, alíneas espaçados... Mas conforme continuasse a desfolhar o caderno, começavam a aparecer partes em branco que passado mais umas páginas se tornavam em páginas em branco; às tantas o caderno já era mais um deserto de espaço por preencher pontualmente habitado por um oásis de escrita, geralmente imputável a uma segunda de manhã voluntarista.

Por detrás desse estilo muito pessoal estava um miúdo que se aborrecia na escola; que achava um desperdício o ter de estar ali a passar para o caderno o que se dizia ou escrevia no quadro. Logo copias de outro caderno.

E lá levantava vôo. A técnica da hélice era das minhas favoritas: enfiar a caneta bic no orifício central da régua, cujo pequeno pino metálico já voara também ele, e pôr a régua a girar, girar, girar. Claro que não demorava muito em ser apanhado daí que a escola me tivesse igualmente ensinado a arte do playback, muito útil nas aulas de flauta: como fingir que estás ali quando estás para além de Bagdad.

E a coisa foi-se apurando: na faculdade, há quase que uma maioria de cadeiras à qual nunca pus os pés. Na altura, já o esquema era mais organizado: havia ali o “dealanço” das fotocópias. Alguém algures cravava o caderno a uma marrona, daqueles que até fazia sínteses dos apontamentos; o pessoal fotocopiava e tal e de véspera antes da frequência, pimba, lá apurava a técnica da leitura diagonal, precursora da era facebook. Claro que ia de directa pá frequência e pronto: esta, já está.

Em causa neste percurso brilhante está nomeadamente a minha tendência para adiar: já em idade adulta, cheguei a ter dossiês com recortes de imprensa por ler. A maior pilha sempre fora a das crónicas do Sousa Tavares. Sempre soube que estava ali um banco de saber a não deitar fora mas lá está: pode esperar não é; então que fique para mais tarde; tenho mais que fazer: voar.


Aqui estão eles, por todo o lado à minha volta: os montinhos. Quando olho para as revistas por ler; livros por terminar; lista de links em pastas de coisas por fazer; montes de recortes... Sinto que é uma vida por viver que está ali fragmentada em montinhos de migalhas feitos mausoléus da culpa; porque é disso que se trata. A certa altura o vôo já é uma fuga ao aqui por este só refletir o número de coisas que ficaram por fazer.


... Se me lembrei desta viagem foi por ter chegado ao pc hoje de manhã, e a coisa estar tão atulhada de janelas abertas, algumas há uma boa semana, que tive de passar para a minha lista de "links por ler" os endereços de modo a poder fechar aquilo tudo e reiniciar a besta encravada.

Se recordo tudo isto com um sorriso, também sei que a procastinação tem sido dos meus principais demónios. Conheço-lhe hoje o nome por ter sido diagnosticado hiperactivo; e este é um dos traços mais característicos daquilo que eu considero ser uma doença. Sei que tomo agora um drunfo e, do nada, deixo de olhar pás estrelas para olhar para a frente e pôr a locomotiva em marcha. Confesso que é uma paz; ser capaz de fazer coisas em vez de ficar sempre na berma da estrada a analisar e a sonhar.

Por isso, digo-vos aqui, viva a droga: não tenho saudades nenhumas destes meus montinhos da culpa.
.


Sem comentários:

Enviar um comentário