domingo, 4 de novembro de 2012

Os educados


Fui ontem à noite à Cinemateca ver o Amarcord do Fellini e lembrei-me de um comentário da minha mãe, dias depois de lhe ter dito que era gay. Tanta instrução, tanta experiência: se calhar se tivesses vivido noutros tempos ou noutras realidades mais simples, quiçá tivesses tido vontades também elas mais simples.

Este comentário fora-me dirigido com afecto e sem especiais censuras, e contrariando o discurso da época, subscrevo essa análise. O aumento do número de homossexuais nas grandes cidades não é mais para mim do que o aumento das condições que permitem a sua vivência. Em substância, se eu vivesse há cinquenta anos no meio rural há fortes probabilidades para que eu tivesse sido um homem casado com uma mulher e sem ser necessariamente recalcado; acredito que a frustração nasça mais da comparação do que de realidades potencialmente desajustadas.

Mas sem nos ficarmos na especificidade gay, aquilo que o Amarcord me espelhou foi a capacidade dos habitantes daquele burgo italiano dos anos cinquenta se ligarem para viverem em comunidade. E noto que o nosso actual modelo social enferma de um mal crónico a esse nível. Investimos, nas últimas décadas, na qualificação dos percursos individuais: emancipámo-nos; qualificámo-nos; direcionámos muitas das nossas vontades para a construção ou descoberta de um eu. Chegámos ao ponto em que o eu deixou de ser capaz de formar um nós.

As cidades estão cheias de gente formada solitária. Uma realidade aliás mais perceptível junto ao sexo feminino. O número de amigas que eu tenho que atravessam os trinta sem darem a mão a ninguém. Todas cheias de qualidades: giras, autónomas, espertas, com humor.

Quando nos ocorre falar dessa solidão afectiva confesso já nem saber que lhes diga. Elas bem que se questionam e repõem em causa mas eu acho é que à margem das inibições individuais acredito mesmo que haja um problema endémico à nossa sociedade. Há algo que deixou de funcionar: o outro com o seu role de diferenças e expectativas passou a ser um impeditivo para a plenitude do eu;  ou pior, a ideia de compromisso amoroso poder aqui assinalar o fim de um mundo de projeções idealizadas.

A isso acresce a tecnologia. Estamos todos neste preciso momento a olhar para um ecrã; é esta a nova comunicação; algo que se alimenta e que alimenta as nossas solidões.

Agora voltando ao Amarcord, não se pense que eu estou aqui a querer acordar o morto; sei que aqueles frescos inspirados de recordações da infância do Fellini são também eles embebidos de alguma idealização. Apenas noto que há um rácio inegável entre o grau de instrução e a propensão para uma vida solitária. Será de hoje?; será o próprio do ser humano enquanto ser pensante?

Acho que não.

Pego no exemplo do filósofo grego Epicuro, hoje tão mal conhecido. Na génese do seu  pensamento encontram-se três princípios: liberdade resultante de uma autonomia material; espaço para a introspecção e, por último, viver uma vida rodeado de amigos: este último ponto era aliás para o filósofo da felicidade e do prazer o aspecto principal da sua doutrina.

E também eu acho que não há vida que mereça ser vivida se não for partilhada.

Sem comentários:

Enviar um comentário