sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Cenas lisboetas 1




Esta cena já deve datar de ano 2000; sei que estávamos a sair do cine estúdio 222, ali no Saldanha, na época em que ainda era gerido pela zero em comportamento… Vínhamos comentando o filme do Tarkovsky quando a Joana me pede para abrandar o passo só para ver ali uma coisa.


Estava à nossa frente um contentor atulhado de objectos e entulho deitados fora de um apartamento em curso de remodelação. No meio de cacos cerâmicos e de plástico, o olho exímio da Joana lá detectou um conjunto de três álbuns fotográficos. Um desfolhar distraído deu logo indícios do pequeno tesouro que ali estava de modo que prosseguimos o nosso percurso a pé com as três relíquias debaixo do braço.


O resto do serão foi passado em cima da cama a folhar e principalmente a ler o recheio daqueles álbuns: imaginem só que o que ali estava era uma recolha meticulosa da correspondência de uma senhora que ao que tudo indica era ou fora a dona do apartamento em obras. Então havia ali cartas escritas do filho quando o mesmo era criança e passava as férias nas colónias para os lados da Covilhã; já no álbum seguinte fomos dar com os bilhetinhos recebidos das gémeas, filhas do filho… Em suma, estava ali um tesouro inestimável apetrechado dos pormenores de uma vida. Não apenas as fotos ou postais de época como a precisão com que os cantos de cada documento eram ali encaixados com ajuda de pequenos recortes de fita-cola.


Para mim, a conclusão era clara: a dita senhora morrera e o tal filho, o miúdo das férias na Covilhã, as suas filhas e toda a galeria de personagens ali embalsamadas não arranjaram melhor uso a dar aquele pedacinho de imortalidade do que deitá-lo fora.



É claro que apesar destas recordações serem um pequeno tesouro é de esperar que tenham merecido outro destino que aquele dado às eventuais poupanças deixadas na conta bancária.



Pois eu não sei como é que eu um dia hei-de lidar com o eventual património que me possa vir parar às mãos mas a verdade é que esta cena chocou-me. Foi mesmo um traumatismo. Durante muito tempo, sempre que dava por mim a entusiasmar-me com a beleza dum instante querendo fotografa-lo, lá vinha a imagem dos álbuns a recordar-me Henrique, guarda este momento para ti: ninguém mais tem interesse em relembrá-lo; nem tu próprio terás, passado o entusiasmo do instante.

Esta foi aliás a razão pela qual demorei tanto tempo até me apoderar este espaço na blogosfera: achava e acho de algum modo pretensioso e um pouco vão, o alimentar esta ilusão de que o interesse das nossas experiências possa ser partilhado.

A verdade é que me perdia aqui há dias num devaneio em torno da morte, mas se a mesma tem alguma função nas nossas vidas será bem essa: a de nos recordar não apenas de que tudo tem um fim e que, em última análise, poucas coisas saberão restituir a magia de um instante presente...(cont)

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