terça-feira, 13 de novembro de 2012

A morte


O ano de 1999 foi o meu ano norte-americano: vivi-o em Saint Louis, cidade onde tive a minha estreia profissional. Já tinha passado um summer camp na Pensylvânia, no Moravian College, mas esta imersão no life style norte-americano com direito a ter de mobilar uma casa e comprar um carro ajudou-me a transcender as caricaturas com que normalmente olhamos para o outro lado do Atlântico.

Uma das muitas surpresas que os States me reservaram foi o haloween: um autêntico fenómeno local até porque lá, as cidades enfeitiçam-se de laranja com o mesmo aprumo que pelo natal. Mas a verdade é que o que fora ali exótico deixara de o ser no ano seguinte, quando já de volta a Portugal, me deparei com o mesmo haloween a de repente substituir-se em largas franjas da população ao tradicional dia de Todos os Santos.

Confesso que continuo a manter um especial desprezo por esta importação cultural por tudo o que ela possa aqui significar.  É mais um pretexto para comprarmos inutilidades coloridas e travestirmos um dia dedicado à  memória dos defuntos num carnaval de consumo.  Como se a tristeza, melancolia e saudade não tivesse lugar nas nossas cidades; é preciso celebrar a vida comprando-a.

A morte passou a fazer parte dos tabus da modernidade.

Eu sei que foi precisamente nesse mesmo ano de 99 que tive das ocasiões mais interessados de pensar a morte; isso porque trabalhava, na altura, numa multinacional cujos trabalhadores vinham também eles dos quatro cantos do planeta pelo que com frequência passávamos serões a conviver questionando singularidades locais.

E recordo-me que a atitude e os rituais que rodeavam a morte eram dos que mais se destacavam no meio de quotidianos e anseios já muito uniformizados. Lembro-me, por exemplo, de que em Marrocos, era suposto enterrar o corpo do morto enquanto ainda estivesse quente; uma tradição nascida de riscos de salubridade pública.  De modo que no norte de África o luto centra-se não em torno do defunto mas de volta da família em luto, servindo de pretexto para reabilitar partilhas e recordações ao longo de vários dias.

Já no norte da Europa, a vivência da morte já me parecera um processo bem mais púdico. O corpo é guardado numa pequena sala refrigerada da agência mortuária durante toda a semana que segue o óbito. Os familiares podem assim privar com os restos mortais até ao dia da cremação, em que o defunto é trazido da sala refrigerada para a sala de cremação, onde decorre uma pequena cerimónia ao longo da qual o corpo já não chega a ser destapado em público.

Mas voltando às mudanças com que se vai olhando para a morte nas nossas sociedades quer-me parecer que o facto do tempo que cada um reserva para o luto diminuir ser um fenómeno que vai de par com o deixar de reconhecer a utilidade da morte; como se a vida só fizesse sentido face a um presente futuro.

Recordo-me de ter visto em tempos um documentário no qual os seniores tokyoitas eram, mal chegava a idade da reforma, vigorosamente convidados a deixar os apartamentos de um vida em centro urbano. Daí rumavam para condomínios com relvados e casinhas bonitinhas para velhos, situados em ilhotas bem afastadas das cidades. Parece que a urbe mais povoada do mundo não dispõe de espaço para não trabalhadores.

Pois para mim, viver é morrer; esta coisa de se estar a crescer ou a envelhecer é, em substância, o mesmo fenómeno.  Por isso até acho saudável aquela prática comum no sudeste asiático de enterrar os mortos nos quintais e nos centros urbanos em vez de os amontoar em bunkers de cimento. Não digo que seja um modelo para levar à letra, mas acho importante que saibamos manter vivos rituais como o dia de Todos os Santos e não fazer da morte aquela coisa escondida nas últimas páginas da imprensa local ou nas traseiras das nossas cidades.

Porque se viver é morrer, saber viver também é, em certa medida, saber lidar com a morte.

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