sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Grey is beautiful


Olho pela janela, e lá está ela
Por todo o lado, a cor cinzenta
É a cor da hemoglobina urbana
Entre o preto e o branco

Recorda-me aquela exposição dedicada a Samuel Beckett,
Em que dizia deitar-se na relva da sua Irlanda natal
E de ver as nuvens a desfilar,  umas mais densas outras mais ténues
E que aquele cortejo de cinzentos lhe viera a esculpir o gosto pelo vazio

O cinzento recorda-me ainda a minha cidade natal
Paris tem dias, semanas e meses em que tudo é cinzento
Tudo menos as noites que continuam cintilantes
Passeio, prédios e pessoas: uma overdose de cinzento

O cinzento quer-se discreto
Não nasceu para ser visto e comentado
É como o calo da flor condenado a ser ofuscado
É esta beleza discreta que me apetece desbravar

Mas Cinza é também a minha gatinha
De nome e de penugem
É nela que mergulho a cara quando preciso de um mimo
É ela que faz de mim o Deus deste cantinho

Hoje é o último dia do mês mais cinzento do ano
Nem o último soube ser
Aproveito-o para fazer aqui um brinde:
À beleza escondida!




quarta-feira, 28 de novembro de 2012

A religião católica


Toda a minha escolaridade foi passada até aos meus dezasseis anos em escolas católicas. Quer isso dizer que daí em diante, a minha construção como jovem adulto se confundiu muito diretamente com uma profunda emancipação face aos ensinamentos catequéticos.

Desde a fatiota à ritualização colectiva da vida pessoal, tudo ali me levava a associar igreja a lavagem cerebral e desrespeito da liberdade intima.

O passar dos anos levou-me a diluir esta reação. Pactuo hoje com o fervor religioso da minha avó por saber que o mesmo a liga a uma forma de universalidade abstracta e que a apazigua face ao sentido da vida. Revejo, por isso, um conjunto de vantagens práticas na sua devoção católica.

Mas levando um pouco mais adiante essa reflexão, observo hoje que as regras que regulam as relações mundiais são muito mais herdeiras de um padrão protestante do que católico: valores como o individualismo; a valorização do sucesso económico, do esforço, do trabalho, da mobilidade ou ainda da realização pessoal.... Toda uma cultura virada para o sucesso onde a católica apela ao recolhimento interior.

Qual poderá ser o contributo da instituição católica, tão disseminada nas nossas sociedades, numa altura em que o mundo apela a tantas mudanças profundas?

Dos jesuítas aos atuais missionários, haverá na dádiva cristã algum legado a reinvestir?

Fará sentido retirar da igreja somente aquilo que interessa procurando esquecer não apenas um certo passado como todo um discurso em vigor sobre questões socialmente fraturantes?

Deveremo-nos focar nas pessoas que vestem o hábito ou nos deuses que idolatram?

É que enquanto este debate surge como irrelevante na Europa, vão-se registando, mundo fora, fenómenos alarmantes de galvanização religiosa: desde os tea party, facção ultraconservadora dos republicanos norte-americanos, à disseminação de preceitos xiitas impulsionada pelos petrodólares dos Emirados Árabes ou do Qatar, de que o movimento ennahdha ou a al-qaeda são o melhor exemplo. 

O século XXI está votado a uma maior espiritualidade e enquanto a velha Europa deserta as suas igrejas em nome de uma vivência mais intima, vai-se assistindo não apenas a autênticas guerras de poder como a uma efetiva disseminação de valores profundamente religiosos. 

Questionem o atual modelo económico, a nossa relação ao dinheiro, o ressurgimento de uma certa castidade junto a franjas juvenis da nossa população: sexo, amor ou sucesso são hoje exemplos de valores que estão a ser altamente revisitados à luz de referenciais que seria bom questionar em vez de nos ficarmos pelo eterno chavão da culpa judaíco-cristã.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

All inclusive


Fui ontem visitar as instalações do novo ginásio virgin, ali no centro de Lisboa: é um mundo.

É, segundo o rapaz que me atendeu, o maior ginásio da Europa. Imaginem agora o impacto que não tem ao nível das restantes salas de desporto da capital.

É só vantagens: e de facto, não falta ali nada embora eu dificilmente me visse a frequentar aquele tipo de espaço.  Mas o que me apetece aqui destacar daquela visita é o mecanismo comercial que lhe subjaz. É muito fácil começarmos a esquecer quais as nossas necessidades de origem para orientarmos a nossa escolha para subprodutos da oferta. São tantas as alternativas que 65 euros por mês para um acesso ilimitado quase que parece uma pechincha.  

A questão é que se entramos com uma ideia do que necessitamos para sair com outra, há algo aqui que deve ser questionado. É este frente-a-frente entre a cultura do livre-arbítrio e a do livre-trânsito que me parece questionável por esta segunda se ter tornado uma imagem de marca da nossa época.

Observem o boom dos menus na restauração: paga-se dez euros e come-se à discrição ou paga-se mais quinze e fala-se em ilimitado ao telemóvel. E com sorte ainda conseguem ir passar férias para dentro de um aldeamento all inclusive.  Tanta ilimitação que quase nos esqueceríamos que só temos uma boca e dois olhos. Quanto menos nos reportarmos a um “eu” ou a um “nós”, cujas necessidades balizadas estão na origem de um bem estar construído, mais facilmente nos deixaremos levar por estes carrosséis dos saldos.

A liberdade, o silêncio, o vazio, a sinceridade são hoje bens muito escassos e valiosos. Quase que se torna épico pensar e viver por si só.

E quando isso teima em acontecer, surgem os arautos do jackpot: é fácil, só tens de vender e divulgar nas redes sociais: é os multiníveis, as herbalife, os banners broker que prometem fazer nascer a árvore das patacas em qualquer quintalinho. Só tens de alugar a tua credibilidade e convencê-los.

Mas olhemos uns para os outros; olhemos para as clientelas ensimesmadas; olhemos para os clientes enfartados de dose dupla de arroz à valenciana; olhemos para todos estes trabalhadores precários induzidos a viverem de comissões miseráveis... que é que veem?

Eu vejo pessoas que procuram no consumo um reduto de poder pessoal.

Será que esta racionalização das ofertas serve assim tão bem os supostos interesses dos públicos?

À força de quererem afastar o desconhecido e o imprevisto será que os consumidores conseguem essa tal tranquilidade?

Nunca dantes como hoje a natureza humana tanto temeu o vazio, a imprevisibilidade das coisas e as noites ao relento.

Muitos acharão que estou aqui a fazer pontes onde elas não existem; que as pessoas continuam livres de viver de fora desses condomínios fechados e que o mercado só lhes oferece mais oportunidades de escolha. Aliás, essa é a nova palavra mágica: a escolha.

A questão é que para poder escolher é preciso perspectiva.  E há fortes probabilidades para que entre um mesmo caminho a subir ou a descer, que a escolha se confunda com a tentação, principalmente para os mais mal calçados. 

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Poder e cultura


Não estará na hora de questionarmos a inocuidade das chamadas figuras públicas que ocupam, hoje em dia, o espaço público?

Desde os colunáveis aos nossos representantes políticos, a nosso modernidade foi consagrando cada vez mais personalidades notoriamente incultas.  A plástica substitui-se à graça e o pretenso carisma à inteligência.  O mercado que mande, dirão alguns; a que eu respondo: não basta.

É que se fizermos uma pequena retrospectiva, veremos que era papel da nobreza de outros tempos, o associar ao poder um dever de exemplaridade e de moralidade, ainda que pudesse só ser em termos aparentes. A burguesia optou por fazer da cultura e da educação o seu melhor brasão.  Já hoje, torna-se difícil tipificar um padrão de meritocracia que caracterize uma qualquer elite.

O bom da coisa, é que a sociedade do saber deixou de ser piramidal e que se encontram hoje pessoas portadores desses valores de exemplaridade em todos os quadrantes socioeconómicos.  Agora eu pergunto: como e quem é que faz hoje história?

Esta é uma pergunta que me leva a questionar aqui outro ponto: qual a relação que seria desejável existir entre a esfera da cultura e do saber e a da ação política?

Recordo que temos como símbolo nacional um poeta: feito inédito num mapa povoado de heróis militares.  É certo que se olharmos para uma galeria de fotos oficiais dos nossos presidentes da república, observaremos que após os trajes militares se seguiu a bela da biblioteca como pano de fundo antes de se chegar agora ao relvado, janela aberta ou lareira, símbolos da inocuidade.

O poder político quer-se hoje afastado da cultura tanto quanto essa se quer hoje alheia a esse parente incómodo. 

A cultura deixou de ser o vector preferencial de construção de imagens sociais fortes; daí que os atuais assessores políticos estejam mais interessados em domar a linguagem audiovisual  do que tentarem ver e perceber a sociedade através das suas representações culturais.

E assim se foi evoluindo Europa fora para governos compostos de especialistas e técnicos de contas. Ser culto é hoje algo de francamente dispensável no exercício do poder.

É bom contudo questionar de onde nasceu o sistema que organiza as relações entre esquerda e direita dentro do qual se pensam as liberdades.  Nomes como Rousseau criaram as bases da nossa democracia moderna.

Alguém aqui acredita que os atuais representantes democráticos sejam os fieis herdeiros de quem um dia definiu conceitos como o de justiça e igualdade?

Déjà vu


Um dia, gostaria de fazer um filme.

Se fosse hoje tratar-se-ia de um reencontro entre dois antigos amantes.

Este meu filme brincaria com os tempos em forma de loop.
Uma mesma cena inicial voltaria o dar o ding dong das horas grandes,
como que para despertar o tic tac dos minutos pequenos
E tanto poderia levar-nos para cenários futuros como pôr-nos a andar às arrecuas.
O foco estaria nos pormenores: ora irrelevantes ora irreversíveis.
Os diálogos seriam escassos e o silêncio não seria vestido com música.
Seria um filme desprovido de moralidade ou verdade;
Um elogio ao acaso, às coisas frágeis e improváveis.
Este meu filme viveria ainda do carácter contraditório das vontades.
As mesmas personagens ora seriam despreocupadas ora obsessivas.

E ao final, o espectador sairia seguramente cheio de dúvidas;
o que faria com que não fosse um filme muito apreciado,
a não ser por aqueles que preferem a questão à resposta.