quarta-feira, 31 de outubro de 2012

O poder das palavras


Ontem cruzei-me com uma palavra nova. Percebi logo que nos íamos dar bem.  Foi-me apresentada em francês.

Chama-se Aporétique.

É daquelas palavras meio esdrúxulas cujo lado rebuscado me garante uma certa intimidade. Não é uma palavra na moda, tipo com duas sílabas e vogais pelo meio. 

Alguns acharão que estou a ser snob ao valorizar este tipo de preciosismo; que a linguagem serve para ser entendido. Pois eu responder-lhes-ei que as palavras também se sussurram e podem ter como única função esculpir um prazer; refinar uma reflexão. E para mim, é o caso desta nova amiga.

Aporétique, chamemo-la aqui aporética, surgiu-me no meio de uma análise ao  Górgias de Platão, um diálogo estranhamente moderno, diga-se de passagem. E fiquei portanto a saber que este era um texto aporético, por não se concluir numa qualquer verdade; por deixar em aberto ambas as teses ali em confronto.  Desde logo, numa altura em que o discurso político é hoje visto como braço armado da economia, achei que não querer extrair verdades das palavras era uma atitude exemplar.

A aporética junta-se assim a uma pequena galeria de palavras escondidas. Outra é a palavra subsumptivo, que vem do verbo subsumir ainda na origem de subsumpção. É uma palavra caleidoscópica: ou seja, um processo subsumptivo, equivale a abrir matrioskas; a apresentar uma tese enumerando a substância da substância; o conceito do conceito; o que na era do nano deveria fazer desta palavra uma senhora palavra.  Mas não é. É dura de mastigar.

Agora correndo o risco de fazer deste texto um senhor texto impopular no reino do pronto-a–vestir-pronto-a-comer-pronto-a-pensar cibernético autorizo-me a extrapolar da palavra para o discurso; ou melhor, da palavra para a língua.

Descobri recentemente o Heinz Wismann, autor de “Penser entre les langues”. Um texto fantástico no qual elogia os benefícios do bilinguismo. Já agora, esta tese defende que ao ter duas línguas maternas, cria-se uma consciência da contingência das línguas; cria-se um espaço de liberdade entre as duas línguas já que não existe um vínculo específico àquele signo. E é, segundo Wismann, neste entre-dois que a liberdade se pode expandir.  Quem aqui fala em línguas fala também em disciplinas. É entre os sistemas que se cria o pensamento.

“É preciso insurgir-se contra este nivelamento mole do esperanto” , proclama Wismann concluindo que uma língua é sempre uma invenção e nunca uma convenção.  E tenho aqui uma excelente oportunidade de vos voltar a apresentar a minha nova amiga: a palavra e a língua são aporéticas. É preciso combater a procura de tradução funcional. O “pão” português não é o “pain” francês nem o “bread” inglês. Os seus ingredientes são diferentes e a linguagem tem de ser fiel a essas diferenças. É da justaposição das línguas que nasce uma cultura em que o mundo fica mais rico.

Note-se, a esse respeito,  que todas as duas semanas, um ancião derradeiro tradutor de uma língua minoritária morre. Perspectiva-se que no final deste século, somente metade dos atuais 6000 idiomas permanecerão vivos (1)

Eu sei que as particularidades linguísticas me foram ajudando a questionar algumas particularidades culturais.  Sempre me espantou, por exemplo, que a França, suposto país da prosa amorosa, não dispusesse de uma tradução para a palavra beijo.  Também acho graça ao facto da palavra Liberdade ser em inglês dividida em Liberty e em Freedom. No que toca ao português, sempre achei que esta coisa da saudade não ter tradução era uma fraude. Para mim saudade é melancolia e não creio que a saudade de um africano expatriado seja diferente da saudade de um português da diáspora. Tenho é notado com algum alarmismo a facilidade com a qual batizamos em inglês uma série de negócios e conceitos trendy. Como se o português fosse uma língua pouco comercial; pouco vendável.

Já agora, para epilogar, recordo-me de há uns anos, numa mesma semana, ter estado em Hong Kong, Macau e Hanói. Encontrei no centro da primeira uma city financeira; no centro de Macau encontrei igrejas e pracetas enquanto Hanoi reservava as suas avenidas mais largas a teatros e à câmara: três heranças coloniais; três visões do mundo.

Não esqueçamos que a palavra esculpe ideias, sonhos e sociedades.

(1) – “Ces mots qui meurent”, de Nicolas Evans

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